Tudo o que é preciso saber para não ter medo de Godard

Alguns críticos, muitos cinéfilos e todos os teóricos o amam. O público, em grande parte, acha seus filmes chatos ou incompreensíveis. O aniversário de 90 anos de Jean-Luc Godard, efeméride turbinada pela celebração dos 60 anos de “Acossado”, pedra fundamental da Nouvelle Vague francesa, recolocaram em pauta a obra inclassificável desse inventor de formas que, apenas por comodismo, continuamos a chamar de “cineasta”.

Cinéfilo compulsivo e, posteriormente, crítico, o diretor franco-suíco assumiu, em meados do século passado, a tarefa de desconstruir a ideia pronta do que um filme pode ser.

O arsenal de imagens, personagens e procedimentos que Godard acumulou em seu HD mental inspiraram o desejo de ultrapassar o formato clássico de narrativa (o das histórias com começo, meio e fim, necessariamente nesta ordem). Não se tratava, apenas, de desconstruir por prazer rebelde. “E se o cinema fosse outra coisa?” é a pergunta que move o bando de jovens inquietos e raivosos no final dos anos 1950.

Para Godard e alguns outros, a resposta passa pela reconquista da originalidade do cinema, ou seja, pela recuperação de uma potência presente nas origens dessa mídia, mas que teria sido esquecida, amortecida pelas regras de clareza e continuidade do modelo narrativo predominante.

Retornar às origens significa, portanto, reencontrar a impressão de verdade e de vitalidade manifesta nos primeiros filmes, nos registros feitos com o cinematógrafo pelos irmãos Lumière, inventores da engenhoca no final do século 19, e pelos cinegrafistas que exploraram as possibilidades do aparelho.

Ali, em vez do relato, sentimos a vibração do instante, em vez da continuidade, percebemos o fragmento exuberante.

Isso, em parte, elucida a disparidade das situações e a estrutura implodida, características que dificultam a experiência do espectador diante dos filmes de Godard.

A fragmentação é um evidente efeito de modernidade (já praticada nas outras artes décadas antes da irrupção dos “modernos” no cinema). Mas também faz parte de uma estratégia estética: despertar o espectador da letargia com que consome e é consumido pelo relato linear.

Contra o naturalismo e sua ilusão de transparência, de encadeamento lógico, mas superficial, de causas e efeitos, Godard e seu bando à parte propuseram uma redefinição do realismo. Tratava-se, como sugeriu o dramaturgo alemão Bertolt Brecht, “de um realismo não como as coisas são na verdade, mas como as coisas são verdadeiramente”.

A fórmula, aparentemente complexa, consiste em suspender os significados prontos e em convocar o espectador para construir sentidos a partir de sua própria experiência. Em suma, libertá-lo do encadeamento.

Outro empecilho citado com frequência seria o excesso de referências (literárias, filosóficas, musicais e pictóricas) que Godard acumula em cena, o que provoca a sensação de estarmos assistindo a uma conferência, e não a um filme.

Trata-se, por sua vez, de outro cálculo do artista, que vê o cinema não como um veículo de histórias, mas como um produto histórico. O surgimento tardio dessa forma artística a distingue das outras, na visão de Godard, pois ela carrega no seus corpo os outros modos de expressão, é cumulativa, sobrepõe camadas, junta cacos e explode em partículas de beleza.

Mas, afinal, é necessário identificar e compreender a polifonia de referências que Godard espalha no nosso caminho para alcançar algum significado final, uma chave de leitura definitiva?

Nem o mais especialista dos especialistas deve conseguir decifrá-las, pois isso teria pouca utilidade. A tarefa, muito mais estimulante, que Godard propõe é construir, constituir sentidos em conjunto, colaborativamente.

Para quem ainda tem medo de Godard, só existe um conselho útil: assista a seus filmes e deixe seu cérebro funcionar.

 

“Acossado” (1960)

Onde: AppleTV – Google Play  – Microsoft

 

“Uma Mulher É uma Mulher” (1961)

Onde: Belas Artes à la CarteTeleCine

 

“O Pequeno Soldado” (1963)

Onde: TeleCine

 

“Bando à Parte” (1964)

Onde: TeleCine

 

“Uma Mulher Casada” (1964)

Onde: TeleCine

 

“A Chinesa” (1967)

Onde: TeleCine

 

“Tudo Vai Bem” (1972)

Onde: TeleCine

 

“Salve-se Quem Puder (A Vida)” (1980)

Onde: TeleCine

 

“Paixão” (1982)

Onde: TeleCine

 

“Carmen de Godard” (1983)

Onde: Looke

 

“Eu vos Saúdo Maria” (1985)

Onde: TeleCine

 

 

“Adeus à Linguagem” (2014)

Onde: AppleTV  – Globoplay – Google Play

 

“Imagem e Palavra” (2018)

Onde: Google Play – Netflix

 

Siga as Histórias de Cinema no FacebookInstagram e Twitter